Leia o blog de Bianca e seu primeiro texto, "Perspectiva de mundo em construção", logo abaixo:
No dia 30 de novembro de 2023 tivemos a oportunidade de participar e presenciar no nosso campus UFSCar Lagoa do Sino um debate no formato de mesa redonda com a temática intitulada “A resistência negra no Século XXI”.
Nesta mesa contamos com a presença de lideranças e representantes, sendo:
Valter & Railda - Lideranças do Assentamento Bela Vista, em Paranapanema - SP, que coordenam a Associação de Produtores Rurais de Bela Vista, no Assentamento Bela Vista em Paranapanema (Banco da Terra).
Vanilda & Ana Laura: Lideranças do Quilombo Porto Velho, Vanilda é Coordenadora da Associação Remanescente de Quilombo do bairro Porto Velho e faz parte do conselho fiscal da cooperquivale (cooperativa das comunidades quilombola do vale do Ribeira) e Ana Laura que compõe a Coordenação da Comunidade e é estudante da Escola Nacional de Formação de Meninas Quilombolas, projeto da Coordenação Nacional de Quilombos (CONAQ) apoiado pelo Fundo Malala.
Lourdes Carril: Docente do Departamento de Geografia, Turismo e Humanidades - DGTH do campus Sorocaba da UFSCar, é coordenadora do Observatório Quilombola Evamariô e faz parte da Coordenação Colegiada do NEAB.
Docentes do campus UFSCar Lagoa do Sino: Jorge Pantoja Filho, professor doutor mediador do debate, e Julia Silva Silveira Borges, diretora do CCN (Centro de Ciências da Natureza).
Esse debate trouxe algumas falas e apontamentos que repercutiram em perspectivas e observações pessoais de mundo que gostaria de, através desse blog, compartilhar com vocês.
Um passado presente
Quando paramos para refletir sobre a definição de território, pensamos também sobre as construções, desconstruções, e relações sociais que determinam um espaço geográfico. Dentro de um território temos objetos geográficos, atores sociais, relações e poderes diversos que, nesse espaço delimitado, incorporam, de modo resumido, medidas de sobrevivência, vivência e subsistência para com sua sociedade (Gondim; Monken; 2016).
De acordo com o Artigo 2º do Decreto 4.887/2003, o território quilombola é considerado como: terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombolas utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural (INCRA, 2017). Talvez a partir dessa definição você se pergunte o que constitui um quilombo, e tudo bem não ter certeza dessa informação. O termo 'quilombo' refere-se a comunidades negras rurais reconhecidas legalmente desde a Constituição de 1988, garantindo propriedade a grupos com história, território e ancestralidade relacionados à escravidão. Esse termo também é utilizado legalmente para designar territórios ocupados por comunidades remanescentes de quilombos, reconhecendo seus direitos territoriais e culturais. O conceito de quilombo está intrinsecamente ligado à luta pela liberdade, resistência cultural e preservação da identidade afrodescendente no Brasil.
A partir das falas levantadas no debate por Vanilda e Ana Laura (lideranças do quilombo Porto Velho), veio à tona a preocupação de que, devemos nos policiar com relação às perspectivas passadistas que nos levam a indiretamente nos referir ao quilombo como “coisa do passado”. Os quilombos são tão atuais quanto as casas há alguns dias construídas, mas estes carregam consigo memórias, histórias e relatos reais daqueles que um dia já representaram o todo em um ato de resistência. Citando a música Palmares 1999 (Natiruts), trazida como referência durante o debate temos o seguinte trecho:
“A cultura e o folclore são meus
Mas os livros foi você quem escreveu
Quem garante que Palmares se entregou?
Quem garante que Zumbi você matou?
Perseguidos sem direitos nem escolas
Como podiam registrar as suas glórias?
Nossa memória foi contada por você
E é julgada verdadeira como a própria lei”
Com ela, vemos a realidade que pouco ou às vezes nunca consideramos: a real história por trás daquilo que se foi escrito. Talvez hoje, nesse momento, você se questione sobre como se deu sua história até você chegar aqui. Caso queira começar a investigar, terá liberdade, uma rede de antepassados e alfabetização científica e funcional para o fazê-lo. Não foi bem assim que aconteceu quando contaram a história dos quilombolas pela primeira vez e, ouso dizer que, até a atualidade, não é bem assim que ela vem sendo escrita. A luta dos quilombolas pode ter se iniciado no passado, mas como símbolo de resistência e busca por seu direito de escrever sua própria e verdadeira história sobre seu povo e seu território, essa luta ainda se mantém. Todo quilombola tem direito a alfabetização, voz ativa, proteção a sua cultura e posse e administração de seu território (Convenção nº 169 da OIT). Esse direito, atendido pela lei, deve ser aplicado e a sua inclusão na sociedade deve e pode ser muito melhor executada. Hoje temos apenas uma aluna quilombola estudando em um campus no qual a cada ano entram 50 alunos para os 5 cursos ofertados. Uma em 250 alunos. Uma em dez anos de existência do campus. Uma em que, quando surgiu a oportunidade de apresentar seu povo a universidade não hesitou e soube exercer seu poder, direito e sua voz fazendo-os participantes do debate e membros presentes na mesa redonda. Que esse número em um futuro próximo seja diferente, e que a presença de quilombolas seja vista como oportunidade de convivência, troca de culturas e experiências, de modo a melhorar uma sociedade falha que precisa aprender a ver o mundo, não como esperamos que ele seja, mas como ele realmente é.
Essa experiência de debate trouxe diversos questionamentos que até então não haviam sido levantados. Os argumentos, opiniões e relatos não pararam por aí.
O labirinto do ensino
Para falar mais a fundo sobre essa experiência com vocês, gostaria de trazer uma reflexão que surgiu durante a fala dos líderes do assentamento Valter e Railda. Contextualizando, o assentamento Bela Vista liderado por esses dois importantes representantes símbolos de determinação, vem sendo nossa porta de entrada para a sala de aula “do lado de fora”, aquela que realmente servirá de base para os enfrentamentos que irão surgir quando sairmos da universidade. O assentamento Bela Vista sofreu por 10 anos com a falta de disponibilidade hídrica tanto para tratamento de efluentes, limpeza, agricultura, quanto para consumo. Os índices de pH, turbidez e cloro estavam muito distantes do que a lei e os departamentos de saúde pública recomendam. Agora, trago a seguinte reflexão: água não é um direito de todos e dever do estado?. Pois bem, por 10 anos eles buscaram apoio e somente neste último ano conseguiram algum retorno. Hoje, após a parceria da universidade e o apoio de uma deputada, podemos dizer que a água chegou e já está própria para consumo. Com o depoimento deles e a gratidão que trouxeram em sua fala com relação a participação da universidade, Railda trouxe uma frase que me deixou pensativa. Segundo Railda, “Faculdade é um labirinto”. Sei que em meio a tantos outros apontamentos importantes que ela nos trouxe, esse comentário pode passar despercebido, mas de fato, faculdade é um labirinto.
Um labirinto, como outro qualquer, a partir do momento que entramos não se sabe ao certo quando, como ou por qual caminho estará a saída. Em meio aos conteúdos, as provas e aos laços que criamos dentro da universidade tentamos nos sustentar até o dia que finalmente, iremos encontrar nossa grade curricular vazia e em um passo a mais, obter o tão esperado diploma. Dessas 3 perguntas: “como?”, “quando?” e “onde se encontra a saída?”, a primeira é a que mais me preocupa. Afinal, como iremos sair da universidade? Quais conhecimentos e a partir de quais experiências e perspectivas conseguiremos aplicar à sociedade? Qual será o nosso diferencial, frente aqueles que já passaram e estão à nossa frente e aqueles que estarão ao nosso lado no momento de receber o diploma?. Esses são os questionamentos que você, aluno, caso esteja lendo esse texto, deve se fazer.
Alguns em sua trajetória pelo labirinto buscam a academia, alguns buscam empresas e alguns até cogitam e se encontram na possibilidade de seguir para os três poderes, mais especificamente a política e o governo. Três áreas importantes que contribuem com financiamentos, investimento e desenvolvimento de pesquisas. Também conhecida como tríplice hélice (Universidade; Indústria e Governo).
Posso dizer caro leitor que se você chegou até aqui neste texto acredito que tenha encontrado um caminho para responder ao primeiro questionamento. Através do CEPAE e das experiências que estamos adquirindo por meio da aplicação e vivência da tríplice ensino-pesquisa-extensão encontramos a cada projeto um diferencial não só para o mercado de trabalho como também para a vida, para o “viver em sociedade”. Ter a oportunidade de ouvir, aprender e compartilhar conhecimentos com pessoas que dispõe de uma história e cultura diferentes faz com que a construção da perspectiva de mundo que adquirimos ao longo da vida seja mais enriquecedora e realista. Poder aplicar e desenvolver os conhecimentos adquiridos em sala de aula na prática com o intuito de contribuir ativamente na infraestrutura sanitária de comunidades em vulnerabilidade social, implementar projetos para tratamento, distribuição e captação de água, além de projetar e ter a liberdade de inovar soluções ainda estando na graduação é sem dúvidas um ganho que não se pode mensurar. Quando seu trabalho, empenho e dedicação influenciam diretamente na vida das pessoas, você luta ativamente para que o resultado seja entregue da melhor forma e o mais rápido possível, porque você realmente acredita e deve acreditar no seu potencial de fazer com que a esperança e expectativa daquelas famílias seja alcançada, sua motivação se torna um propósito. No momento em que comecei a contribuir com os projetos a relação de tempo e qualidade dos resultados fez muito mais sentido.
Reconheço a importância da tríplice hélice, mas acredito que é preciso considerar e evidenciar nos três aspectos a importância da sociedade nesse meio e o papel, influência e impacto que essas três frentes tem para com o seu entorno. A relação sociedade e tríplice hélice está defasada. Através do apoio, incentivo e implementação da tríplice de ensino-pesquisa-extensão a universidade poderá cada vez mais contribuir com as comunidades que carecem de conhecimento e informação. Consequentemente, com o respeito e valorização do papel e impacto da universidade no meio, a indústria e o governo devem se apresentar como financiadores para fazer com que esse projetos se tornem realidade e a mudança na vida das comunidades mais vulneráveis de fato aconteça.
Alicerces de pensamento
Trouxe neste texto vários questionamentos que me vieram à tona durante a mesa redonda: “A resistência negra no Século XXI”. A resistência ainda existe, o racismo ambiental e estrutural ainda existe. Não se considera passado se está ocorrendo no presente.
O ensino é um labirinto, a universidade é um labirinto, e nós muitas vezes somos nosso próprio labirinto. Até encontrarmos uma saída (que pode ser à priori um diploma) nos deparamos com vários caminhos e oportunidades. Cada um tem sua própria jornada, caro leitor, e a nossa de certa forma nos trouxe até esse momento. Espero que esse conjunto de informações e apontamentos trazidos neste texto tenha lhe permitido construir ou instigado a curiosidade de viver novas experiências para que você possa formar uma melhor perspectiva realista do mundo e entender que ainda há muito em que podemos contribuir.
Considerações estruturais
Não entrei em méritos nem conceitos acerca do saneamento básico e sua importância, deixarei subentendido que água é vida, não só para consumo mas também para produção de alimentos. Caso tenha interesse em ser um agente de mudanças em um espaço de democratização de conhecimento em que trabalhamos de maneira coletiva para construção de soluções inovadoras e acessíveis, venha contribuir com nosso grupo e fazer a diferença positiva na vida de diversas famílias.